- CUIABÁ
- SEGUNDA-FEIRA, 16 , JUNHO 2025
Junho tem cheiro de terra molhada, fogueira e milho no fogo. É quando o Brasil rural se infiltra na cidade com suas bandeirinhas e, sem pedir licença, ocupa nosso prato — e nosso imaginário. Nesse cenário, o milho reina absoluto: cozido, assado, ralado, fermentado, batido no liquidificador. Um grão ancestral que resiste às transformações do tempo com a mesma firmeza de uma espiga no pé.
Mas o milho é mais do que festa. Ele é símbolo. E também é alerta.
Antes de virar quitute junino, o milho foi — e ainda é — base alimentar de povos originários, sustento de pequenas agriculturas e protagonista silencioso de grandes disputas econômicas. Nos Andes e no Cerrado, nas margens do São Francisco ou nas plantações do Mato Grosso, o milho continua sendo um ponto de interseção entre cultura, política e nutrição.
Em tempos de ultraprocessados, o milho ressurge em duas versões: a que acolhe e a que engana. É a mesma espiga que nos oferece o bolo da roça e o xarope que adoça refrigerantes. Um grão, dois destinos. Um alimento que pode nutrir — ou mascarar.
Como nutricionista, vejo no milho um símbolo perfeito do nosso desafio contemporâneo: resgatar o alimento de verdade sem perder a conexão com o que ele representa. É possível honrar a tradição e, ao mesmo tempo, informar. Celebrar o cuscuz e alertar sobre o flocão aditivado. Ensinar que a canjica branca — a verdadeira, do milho — nada tem a ver com o sagu de pacotinho que se disfarça na prateleira.
Nas festas juninas, esse grão dourado ganha holofotes. Mas o que acontece com ele no resto do ano? Ele vira ração animal, vira “base para snacks”, vira subproduto industrial. E, aos poucos, o milho se distancia do seu papel mais nobre: o de alimento acessível, versátil, cheio de fibra, de história e de ciência.
Falar sobre isso em junho é mais do que oportuno. É necessário. Porque comemorar não é apenas mastigar — é também refletir sobre o que nos nutre, sobre o que foi simplificado demais para virar produto, sobre o que perdemos ao deixar que tradições sejam embaladas a vácuo.
A comida da roça tem potência. E o milho, quando respeitado, tem poder: de alimentar, de unir, de educar. Por isso, ao servir a pamonha, que sirvamos também informação. Que a canjica venha acompanhada de contexto. Que o milho volte a ser inteiro — no prato, no corpo, na consciência.
Com base em evidência:
✔ Alimento funcional natural: o milho é fonte de fibras insolúveis, compostos fenólicos e antioxidantes, com potencial de reduzir risco de doenças metabólicas (Martínez-Flores et al., Journal of Food Science, 2022).
✔ Ultraprocessados com base de milho: derivados como snacks, cereais “matinais” e refrigerantes adoçados com xarope de milho têm alta densidade calórica e baixo valor nutricional (Monteiro et al., Public Health Nutrition, 2019).
✔ Segurança alimentar e soberania do campo: pequenos agricultores familiares são responsáveis por mais de 70% do milho não transgênico destinado ao consumo humano no Brasil (IBGE, Censo Agropecuário, 2017).
Sobre a especialista
Nutricionista clínica e estética na Clínica Integrada FLOReSER. Atua com base em evidências científicas, aliando nutrição, comportamento e tendências contemporâneas.